Nunca diga que ele fazia isso por fama.
Pelo menos, não só por fama.
Seu nome de batismo ninguém mais lembra. Nas redes, era conhecido como Vibração Consciente, com quase 300 mil seguidores em plataformas como TikTok, YouTube e Instagram, um daqueles tipos que falava sorrindo sobre “transmutar energias”, “abrir chakras com frequência de 528 Hz” e “levar luz aos lugares esquecidos”.
Foi com essa proposta que anunciou, numa manhã nublada de julho:
— Meus amores, hoje eu vou fazer algo que poucos têm coragem. Vou entrar no Edifício Anhangabaú. E sim, sozinho. À noite. E vou tentar ajudar quem ainda não conseguiu seguir a luz…
A câmera tremia na mão dele, mas o sorriso era firme. No peito, colares de quartzo rosa. No bolso, um cristal ametista. Na cabeça, uma convicção: ele realmente achava que podia ajudar.
O vídeo começa nas ruas escuras da região central de São Paulo, com o rosto do sujeito iluminado apenas pela lanterna do celular acompanhado dos sons de seus passos.
— Tô aqui, gente… tá meio tenso, mas nada que a gente não enfrente com amor e luz.
Ao fundo, o contorno do prédio, palco de uma tragédia amplamente repercutida nos anos 70, se impõe como uma cicatriz preta contra o céu encoberto. São inúmeros os relatos de coisas inexplicavelmente estranhas ocorrendo na área.
Ele passa pela calçada com passos rápidos, para diante da entrada lateral — uma porta de ferro semiaberta, como se convidasse.
A câmera treme.
— Parece que alguém esqueceu isso destrancado…
O influencer clandestinamente entra.
O saguão está escuro, tomado por um cheiro de mofo antigo. Pó suspenso na luz da lanterna revela formas indecisas. O som do sapato ecoa alto demais.
— Uau… é… a energia aqui é… diferente.
Diz isso tentando sorrir, mas os olhos vacilam.
Um ruído seco ecoa — um estalo, como madeira velha quebrando — vindo do fundo do corredor. Ele se vira bruscamente.
Nada.
— Calma… calma. É só madeira. Ou eco. Ou… sei lá.
Ele continua.
Subindo uma escada de emergência, chega ao oitavo andar — onde o ar parece mais frio, embora não haja janelas abertas.
Ao dobrar o corredor, encontra algo que não esperava: uma porta de madeira simples, diferente de todas as outras, sem numeração, entreaberta.
— Essa porta… parece mais antiga que o resto do prédio.
A madeira é antiga, com marcas de cupim, dobradiças enferrujadas e um número parcialmente apagado. Ao tocar na maçaneta, a madeira range como se estivesse sendo aberta após décadas.
Ele hesita.
— Gente… vocês estão vendo isso comigo, né?
Ele entra.
Entretanto, o interior não parece parece de um apartamento, mas o de uma casa.
O corredor termina numa porta de
O ambiente não combina com o restante do edifício: paredes de cal e madeira, móveis cobertos de lençóis, o chão irregular de tábuas com ruídos secos a cada passo.
Em cima de uma mesa estreita, repousam frascos de vidro, um balão de fundo redondo com pó seco no interior e um livro encadernado em couro, onde mal se lê o título.
— Tem coisa de… química? Sei lá. Alguém morava aqui?
A câmera passa rapidamente por uma fotografia sépia emoldurada, quase apagada pelo tempo. Mostra uma mulher de coque baixo e duas moças mais novas, sentadas num jardim. Nenhum nome. Nenhuma legenda.
Ele respira fundo.
— Gente, isso tá muito estranho… é como se eu tivesse voltado no tempo. Será que esqueceram de reformar este apartamento?
A luz pisca. Um ruído abafado — como se alguém estivesse andando no andar de cima — faz a câmera se mover de forma brusca. Mas o local parece não ter escada.
— Tem alguém aí? Fale comigo, estou aqui para ajudar!
Nenhuma resposta
Ele caminha até o fundo da casa. Uma porta semiaberta revela uma espécie de porão.
— Eu devia ir embora…
Mas a live está cheia. Milhares assistindo. Corações subindo na tela. Comentários histéricos.
Ele sorri, nervoso.
— Tá bom. Só mais um pouco.
Ele desce.
E encontra um poço de tijolos, coberto por tábuas velhas.
Ao lado, uma foto rasgada ao meio, apenas a borda da figura masculina ainda visível.
O som de água gotejando ecoa. Mas a umidade do lugar é inexistente.
— Que lugar é esse?
Ele se abaixa. Toca a borda do poço.
Escuta algo...
Três batidas, secas e abafadas, vindas de dentro.
E permaneceu ali, com a respiração presa, olhando as tábuas que cobriam o poço. As batidas pararam. O silêncio, agora, era palpável.
A lanterna caiu um instante, apagou, e ao acender de novo a luz, a casa parecia ter mudado. As paredes de madeira agora estavam riscadas por símbolos estranhos, lembrando hieróglifos indígenas, enquanto um vento frio percorria o ambiente, apesar do local não possuir janelas, pelo menos não as que pareciam poder ser abertas.
O que se conseguia ver através do celular eram rostos de mulheres chorando, crianças correndo em sombras, correntes espalhadas no chão, homens de diversas etnias agonizando — tudo em rápidos flashes, como relâmpagos num céu encoberto.
Tudo bem diferente do que foi divulgado na televisão e dos casos de fantasminhas camaradas que muidos relatam encontrar no local. O fogo, agora, não era apenas na estrutura do edifício.
Seria uma boa hora para falar com o seu público...se fosse possível raciocinar. Nada do que absorveu imitando outros coaches místicos da internet lhe valeria de alguma coisa agora.
O terror já havia lhe dominado. Sentiu um desespero que lhe corroeu a alma. As coisas ficaram reais.
E a câmera tremeu. Caiu para o chão, apontando para o teto torto.
Um cheiro de terra úmida misturou-se ao odor metálico de ferro queimado.
Uma voz rouca sussurrou, abafada, ecoando entre as vigas:
“Não haverá descanso...”
Ele se levantou de um salto, pegou a lanterna, apontou para o poço.
Dentro dele, algo se deslocou — não era água, e sim um reflexo vermelho que pulsava, como se fosse um coração batendo.
Um grito seco escapou de sua garganta quando ele percebeu, graças às sombras criadas pela lanterna do celular, a silhueta de um homem ao lado dele — tão real quanto as vigas rangentes.
— Sai daí! — berrou, tateando para trás, tropeçando nas tábuas.
Seu corpo esbarrou em algo pesado. Um monociclo antigo, coberto de teias de aranha, que derrubou um frasco quebrado, espalhando um líquido escuro.
Então, o chão cedeu sob seus pés.
Despencou.
Silêncio novamente.
Epílogo Viral
Para quem estava acompanhando na internet, pode ver, no momento, em que a live foi cortada abruptamente, o rosto pálido e desesperado do “místico good vibes”, um poço pulsante de luz carmesim e uma silhueta indistinta, de costas, quase imperceptível, sumindo em meio à escuridão. Depois, a transmissão se corrompeu até ficar incompreensível, se degenerando até se tornar nada mais do que "gritos presos em estática, um lamento de vozes torturadas, entrelaçados com ecos de um abismo sem nome, pulsando com terror primordial", como deixou um comentarista mais poético no vídeo.
O vídeo seguiu online, por um bom tempo virando fonte de memes, teorias conspiratórias e creepypastas. Uns juram ter ouvido tambores indígenas no áudio; outros afirmam que viram um vulto com correntes. Outros dizem que o influenciador foi parar em Sete Além, que foi abduzido por alienígenas ou que perdeu a memória com o incidente e agora vive como mendigo pelas ruas de São Paulo.
Aqueles que contestam a autenticidade asseguram que tudo não passa de mais uma jogada de marketing de algum youtuber ambicioso e sem noção, que um dia vai reaparecer e cinicamente retomar sua carreira como se nada tivesse acontecido. Só que anos já se passaram, e nem o rapaz nem seu celular foram encontrados.
Aliás, o próprio mistério do Edifício Anhangabaú também já perdeu relevância, mesmo que de vez em quando ainda seja mencionado em algum "top 10 lugares assombrados no Brasil". Mas é bem raro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário