quinta-feira, 8 de maio de 2025

A Semente da Esfinge

Não havia televisão. Nem geladeira. Nem tempo fácil. Apenas o frio cortante e o estômago vazio. Era disso que Caim se lembrava quando pensava na infância — da fome que apertava, mas nunca paralisava, e do gosto amargo do pão escuro que sua mãe fazia às sextas-feiras.

Ele nasceu entre ciganos vindos da Romênia, que abandonaram a Europa em 1933, pressentindo o horror que se aproximava. Chegaram ao Brasil a bordo de um navio cargueiro, desembarcando nas docas do Rio de Janeiro sem saber onde dormir ou comer. Foram guiados por uma velha quase cega, de dentes negros e português truncado, até uma enseada azulada, perto do manguezal em Ramos. Ali se estabeleceram — terra e pântano, fé e segredo.

Na superfície, eram humildes e trabalhadores. Caim tornou-se sapateiro, como o pai. Mas por trás da lona de suas tendas, à luz tênue de velas pretas, rendiam culto à Esfinge, entidade ancestral com corpo de cabra e olhos que sabiam o futuro.

Sempre às sextas-feiras, às 3h15 da manhã, a tribo reunia-se em seu tabernáculo decrépito para sacrificar animais — porcos, preferencialmente, que deveriam sofrer antes de morrer, para que a dor ungisse a oferenda. Era um culto reservado, transmitido em sussurros entre as gerações. Aquele que revelasse qualquer parte dos rituais seria lançado ao esquecimento eterno.

Foi numa dessas madrugadas, quando o mar sussurrava ondas preguiçosas à beira da enseada, que tudo começou a se despedaçar.

O ar pesava com incenso grosso e vinho escuro. Todos estavam em êxtase, dançando em delírio, gemendo como se atravessados por uma força invisível. A velha que conduzia o culto — de quadris largos, sorriso calmo e cabelos negros como breu — elevou os braços e anunciou a chegada da oferenda viva.

Surgiu, então, uma mulher esguia, nua, coberta apenas por uma máscara feita com o crânio de uma cabra. Era grotesca, flácida e pálida, mas sua presença arrepiava até os ossos. Quando ela estendeu os braços para Caim, algo nele se quebrou. Em transe, ele a tomou nos braços e a conduziu ao centro do pantáculo desenhado na lama.

O ato que se seguiu foi obsceno, litúrgico, impossível de ser descrito com clareza. Mas à medida que o prazer se intensificava, Caim sentia-se invadido por visões — ele via o princípio de tudo e o fim de todas as coisas. Sentia-se ligado a sábios e assassinos, a reis e serpentes. E então tudo terminou num último espasmo — físico, espiritual, cósmico.

Desmaiou.

Acordou em sua própria cama, com a cabeça latejando e a máscara da cabra sobre o travesseiro. Lembrava-se de quase nada, exceto flashes, imagens desconexas que relampejavam por trás dos olhos. Saiu da tenda e, por um instante, acreditou que tudo fora um delírio.

Mas ao olhar para a mãe — aquela senhora de cabelos brancos e olhar enigmático — algo nele estremeceu. Ela sorria enquanto servia o pão comum do dia. Mas em um movimento sutil, num gesto qualquer, Caim soube. Ela fora a mulher do ritual.

Ele a confrontou. Chorou. Gritou. A verdade saiu como uma confissão antiga, repetida há séculos.

“Era tudo em nome dela. Da Esfinge.”

Disse que Caim fora concebido de uma das formas mais abomináveis possíveis. Que sua linhagem era um recipiente moldado para trazer ao mundo a semente da abominação. Que ele mesmo, ao unir-se àquela entidade, selara o destino de toda a tribo — e provavelmente a deixara grávida.

Caim fugiu. Vagou pelo Rio, trabalhou onde pôde, tentou esquecer. Até que conheceu Odete, uma mulher de olhos profundos e rosto luminoso. Ali encontrou paz. Teve com ela uma filha. Reaprendeu a viver.

Mas a paz não dura para quem tem o sangue amaldiçoado.

Anos depois, um velho amigo da tribo o procurou: sua mãe estava para dar à luz. E ele era necessário.

Contra o instinto, Caim voltou. Chegou a tempo de ouvir o primeiro choro. Ou melhor, o primeiro balido.

Empurrou as mulheres, entrou na tenda. Viu sua mãe sorrindo, segurando em um braço uma cabra de corpo humano, e no outro, um bebê com cabeça de bode. Ambas fêmeas. Ambas suas filhas.

Algo se rompeu em Caim. Num frenesi de horror, arrancou a criatura mais próxima do colo da mãe e a esmagou contra o chão. Quis fazer o mesmo com a segunda — mas um disparo cortou o ar. Depois outro. E mais um.

Caim caiu, primeiro de joelhos, depois ao chão. Morreu ali mesmo, ainda com o ódio nos olhos.

Odete, meses depois, deu à luz uma menina de olhos escuros e sorriso tímido. Uma criança comum. Ou quase.

Dizem que de tempos em tempos, uma mulher de vestido preto e máscara de cabra leva flores ao túmulo de Caim.

E que à noite, perto do mangue de Ramos, ainda se ouve um balido.


Este conto foi naseado num conto narrado pelo Pão Duro TV no canal Gato Preto Terror chamado de Esfinge.

Confira o conto original, em áudio, abaixo:

Temos também um vídeo do Pão Duro TV pra você conhecer:

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