Lucas estava decidido a escrever um livro. Não um romance qualquer, nem um desses panfletos de autoajuda que se empilham em livrarias de aeroporto. Ele queria algo maior. Um tratado. Um manifesto. Um documento que mudasse a forma como as pessoas viam o mundo — mesmo que ninguém o lesse.
Mas ele sabia que não conseguiria sozinho. Precisava de orientação, de uma figura com autoridade. Alguém como Hélio Dravon, um pensador recluso, outrora acadêmico brilhante, que havia desaparecido dos círculos intelectuais há anos, após lançar sua obra mais polêmica: As Raízes do Vazio.
O livro era uma mistura de filosofia esotérica, tradicionalismo radical e misticismo pessimista. Um tipo de Dugin tropical, cruzado com Schopenhauer e astrologia védica. Lucas o devorou em três dias. Precisava entrar em contato.
Encontrou, num blog obscuro, um número de telefone. Ligou, meio cético.
— Alô?
— Quem deseja atravessar o portal? — disse a voz rouca, arrastada, mas perfeitamente lúcida.
Lucas hesitou. — É... meu nome é Lucas. Eu queria... queria falar com o senhor Dravon. Sobre um projeto.
— Já sei. Você quer escrever. Quer entender. Quer o mapa da caverna. Pois venha. Mas venha sozinho. E não traga espelhos.
A ligação caiu.
Nas semanas seguintes, os dois conversaram por telefone. Hélio Dravon falava por horas, como se esperasse por alguém que finalmente pudesse ouvi-lo. Lucas anotava tudo. Sentia-se escolhido. Às vezes, desligava atordoado, sem saber o que era delírio e o que era filosofia.
— O mundo já acabou — dissera Hélio numa das ligações. — Só nos resta construir torres para gritar no escuro. Seu livro é sua torre. Escreva com a tinta do sacrifício. E não olhe para trás.
Certo dia, Lucas decidiu visitar o pensador. Ele já tinha o endereço: uma casa isolada nas montanhas do interior, cercada por névoa e mata fechada. Pegou o carro e partiu com um caderno cheio de anotações e reverência no peito.
Chegou ao entardecer. A casa era como imaginava — de madeira escura, telhado inclinado, janelas cobertas por cortinas pesadas. Bateu à porta. Nada. Tentou a maçaneta. Estava destrancada.
Entrou.
Silêncio. O ar cheirava a incenso antigo e poeira de livros não tocados. No centro da sala, havia uma escrivaninha com uma máquina de escrever, algumas velas consumidas e uma poltrona vazia. Sobre a máquina, um papel com uma frase:
“A tradição nunca morre. Ela apenas muda de rosto.”
Então ouviu passos no andar de cima. Subiu devagar. Uma porta entreaberta deixava escapar uma luz âmbar. Empurrou-a. E congelou.
No quarto, sobre uma cama coberta por lençóis puídos, repousava o corpo mumificado de um homem — os traços inconfundíveis de Hélio Dravon. Pálido, encolhido, com as mãos entrelaçadas sobre o peito e uma expressão serena demais para alguém tão...
...Morto.
Lucas recuou, tropeçando.
— Não pode ser... a gente falou semana passada...
A luz da sala tremeluzia. As sombras nas paredes pareciam se mover por conta própria. Ele desceu, apavorado, tentando sair. Mas a porta da frente agora era de pedra. No lugar da janela, uma estante. O mundo exterior desaparecera. Estava preso.
Foi então que viu o espelho na parede oposta. Não se lembrava dele ali antes.
Aproximou-se.
O reflexo não era seu.
O rosto era parecido, sim. Mas mais austero. Os cabelos mais longos. A barba preenchida. Os olhos, fundos e antigos. O reflexo moveu-se primeiro. Sorriu.
— Bem-vindo à torre — disse o reflexo.
Lucas caiu de joelhos. Em seu bolso, encontrou uma folha de papel dobrada. Era o início do seu manuscrito. Mas não com sua letra.
O título?
“As Raízes do Vazio — Segunda Edição”
A partir daquele dia, nunca mais se ouviu falar de Lucas. Mas blogs começaram a circular trechos de um novo livro. Um novo autor. Um novo guru.
Seu nome era L. Dravon.
E ele só dava entrevistas por telefone.
Este conto foi escrito por Pão Duro TV
Confira um vídeo dele abaixo:
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