sábado, 10 de maio de 2025

O Atacadão das Almas

Thiago já estava desempregado havia tempo. Com a crise que se estabeleceu no Brasil de forma quase perpétua, havia mais de um ano que ele não trabalhava. Ele fazia seus "bicos" e dava seus "pulos", mas a situação estava apertada, e ele precisava saber que teria um provento.

Foi aí que resolveu se candidatar a uma vaga de emprego na empresa que mais contratava na cidade, uma grande rede de atacado e varejo: o **Mercado Cruz das Almas**. Logo foi chamado para uma entrevista.

Chegou no dia da entrevista e logo foi conduzido a uma sala minimalista. O entrevistador, um homem de meia-idade com óculos de aro grosso e um cavanhaque muito preto, o senhor **Abolos**, estava sentado atrás de uma mesa de vidro transparente, que mais parecia uma peça de decoração do que um objeto funcional. Ele lhe sorriu de maneira cordial, mas com um olhar que Thiago não conseguia decifrar.

— Bom dia, Thiago. Antes de começarmos, você está ciente da nossa filosofia de empresa, não? O Mercados Cruz das Almas acredita em um mundo em que todas as vozes são ouvidas e que a equidade e a inclusão devem ser centrais para todas as nossas ações.

Thiago, que já ouvira falar da tal “agenda progressista” por algumas de suas aulas na faculdade, assentiu. Não estava completamente à vontade com algumas dessas ideias, mas sabia o que se esperava dele. Pensou em dar uma resposta polida.

— Sim, claro. Acredito que a diversidade de perspectivas seja essencial em qualquer ambiente de trabalho.

O entrevistador acenou com a cabeça, como se satisfeito.

— Ótimo. Agora, temos uma série de perguntas. Este é um teste importante, Thiago. Não se preocupe, é apenas para ver se você realmente se alinha aos nossos valores. Pronto para começar?

Thiago estava nervoso, mas controlou a respiração e sentou-se ereto. Não sabia o que o aguardava, mas ele queria o trabalho. Para ele, era só uma formalidade. Ele apenas precisava dar as respostas certas.

A primeira questão foi sobre teoria de gênero.

— Em um mundo ideal, como você acredita que os diferentes gêneros devem ser reconhecidos e respeitados em uma sociedade? E o que você pensa sobre as questões de identidade de gênero fluida?

Thiago mordeu o lábio. Ele sabia o que se esperava de alguém que quisesse entrar naquele ambiente. Ele pensou nas palavras cuidadosamente. Escolheu as que pareciam mais inócuas a ele.

O entrevistador sorriu, marcando algo no papel.

A segunda pergunta era sobre teoria crítica marxista:

— Qual sua visão sobre as disparidades econômicas em nossa sociedade e como podemos trabalhar para atingir um sistema verdadeiramente igualitário?

Thiago engoliu em seco. Marx nunca foi um assunto de seu interesse, mas ele tinha lido o suficiente para dar uma resposta convincente. Mais uma vez, ele respirou fundo e deu a exata resposta que o senhor Abolos estava esperando.

O rapaz olhou em seus olhos e viu um sutil sorriso se formar no canto de seu lábio, e um brilho estranho em seus olhos... um brilho vermelho.

O entrevistador continuava anotando suas respostas com atenção, aparentemente satisfeito.

Depois vieram outras questões sobre opressão sistêmica, interseccionalidade e direitos das minorias. Thiago foi respondendo, cada vez mais confiante de que estava cumprindo o protocolo necessário para ser admitido.

Ele se sentiu aliviado quando, após a última pergunta, o entrevistador se levantou e estendeu a mão.

— Parabéns, Thiago. Acreditamos que você será uma ótima adição à nossa equipe. Pode começar amanhã, às 9h. Basta assinar aqui.

Entregou-lhe o contrato. Era um tanto extenso para um contrato de trabalho, mas Thiago nem leu, apenas assinou.

— O senhor tem uma caneta, senhor Abolos?

E pegou uma caneta, com a qual pôs seu nome no contrato. Estranhamente, a caneta tinha um pino afiado, que furou o dedo de Thiago, e uma única gota de seu líquido vital caiu sobre o papel branco, imaculado do contrato.

Thiago sorriu.

O primeiro dia de trabalho foi como qualquer outro. Ele entrou na empresa, cumprimentou seus novos colegas e foi encaminhado para o seu posto.

Mas, ao colocar o cartão na máquina de ponto, algo estranho aconteceu. Ele foi até o ponto eletrônico, bateu o cartão e, em vez de seguir para a área de descanso, encontrou-se em um corredor escuro, sem fim. Era como se o prédio tivesse se distorcido, uma espécie de espelho do seu próprio medo, mas amplificado.

Ele sentiu o peso da pressão sobre si, como se fosse observado por algo invisível, algo enorme, algo que não deveria estar ali. Suas mãos começaram a suar. Ele tentou virar-se para voltar ao ponto de entrada, mas o corredor parecia se estender mais e mais à medida que ele andava.

Ao olhar para o seu reflexo em um espelho no final do corredor, viu algo que o fez parar no lugar. Sua imagem estava distorcida. Ele não parecia mais humano — estava... diferente. Seus olhos estavam maiores, as feições do rosto alteradas, como se ele fosse uma versão de si mesmo corroída, transformada.

Sua pele parecia translúcida, e ele sentiu uma energia, uma presença, que o fazia tremer por dentro. Algo o estava consumindo, algo que ele não entendia.

— Thiago... — uma voz profunda sussurrou de algum lugar atrás dele.

Ele se virou, mas não havia ninguém. Só a escuridão e o espelho.

Ele tentou chamar por alguém, mas sua voz saiu estranha, como se estivesse sendo sufocada.

Foi então que ele percebeu: o que ele tinha acabado de fazer, as respostas que havia dado, tinham causado uma ruptura. Ele não estava mais em um simples emprego. Ele estava no lugar onde as almas perdiam sua essência, onde as verdades e mentiras se fundiam, e onde os que se alinhassem com o sistema se tornavam parte de algo muito maior... e muito mais distorcido.

Thiago não estava mais em um escritório moderno. Ele estava no inferno.

Ele se tornara uma versão distorcida de si mesmo, uma marionete, uma sombra do que um dia foi, alimentado pelas regras que agora ele aceitava como sua própria identidade. Seu contrato de trabalho tinha sido assinado com um preço muito maior do que ele poderia imaginar.

A porta à sua frente se abriu, e ele sentiu a presença de outros — sombras em trajes modernos, todos com olhos vazios e figuras retorcidas, como se estivessem ali, mas ao mesmo tempo longe demais.

Thiago soubera, em seu íntimo, que não havia mais volta.

O inferno, com suas regras, sua distorção e seus contratos, o tinha reclamado.

E Thiago, agora, era parte dele.


Este conto foi escrito por Pão Duro TV

Confira um vídeo dele abaixo:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens mais visitadas