Era madrugada alta quando Ronaldo pisou fundo na estrada deserta, a caminho do Rio de Janeiro. No banco do passageiro, um sorte de muambas do Paraguai — relógios digitais, perfumes "franceses" e a caixa do seu recém-instalado tesouro pessoal: um rádio automotivo novo, reluzente, soltando as batidas eletrônicas de uma música pop recém-lançada.
Finalmente conseguiu comprar algo de bom e diferente para trazer para a turma a um preço decente. Ronaldo estava realmente satisfeito. As coisas estavam muito difíceis, mas ele sentia que estava conseguindo se virar.
O céu estava limpo, mas um vento estranho varria a pista com cada vez maior frequência, uivando entre as árvores retorcidas. Ele aumentou o volume, tentando ignorar a sensação incômoda que crescia com a solidão da estrada.
Foi quando viu o ônibus.
Um veículo imundo com faróis foscos lançando uma luz mortiça no retrovisor de Ronaldo. Parecia ter brotado brotado da própria escuridão. E aproximava-se depressa demais, ganhando velocidade como uma fera esfomeada.
Sentiu o primeiro tranco: uma batida leve no para-choque traseiro. Instintivamente, acelerou. As rodas cantaram no asfalto frio.
Por quilômetros, foi uma dança tensa de ultrapassagens, freadas bruscas, desvios arriscados. O motor do Gol gemeu sob o esforço. O ônibus parecia querer esmagá-lo, incansavelmente, com uma agilidade incomum para um veículo de tamanho porte.
Quando a estrada voltou a ter uma iluminação melhor, Ronaldo viu uma parada de caminhoneiros aberta às margens. Em desespero, tocou o carro para o estabelecimento. Estacionou sob a luz fraca de um poste, suando frio.
Entrou na parada meio sem entender ainda o que estava acontecendo, pesando na situação surreal que passara. Pro seu alivio, o ambiente era outro, aconchegante. Os frequentadores com um jeito levemente reticente, mas ainda amistosos, tomando café e lanchando, conversando sobre condições da estrada e outros aspectos de seus cotidianos. Ronaldo pediu café, engolindo o líquido amargo como um náufrago.
No lugar também funcionava uma espécie de empório que vendia lembranças, garrafas de cachaça, facas, queijos, doces, imagens de santos, rosários, bíblias e outros produtos. Tudo muito simples, serenamente despretensioso, o que fez Ronaldo considerar se valeria a pena comprar algo, apesar de seus nervos estilhaçados.
— Vi um ônibus... — disse ele, tentando puxar assunto com o pessoal — muito velho, imundo e incrivelmente rápido... quase me jogou fora da estrada.
No mesmo instante, o ambiente uma vez receptivo esfriou. Alguém limpou a garganta. Outro empurrou o prato mais para longe, sem olhar para Ronaldo.
— Coisa de estrada, moço... acontece. — disse um deles, olhando para o próprio prato como se fosse a coisa mais interessante do mundo.
O silêncio cresceu como erva daninha. Sentindo-se intruso, Ronaldo pagou e saiu.
De volta à estrada, por um tempo, apenas o som familiar da música preencheu a cabine. Relaxou o suficiente para achar graça da própria paranoia. "Talvez fosse só um ônibus perdido de torcida organizada com algum motorista virado no rebite", pensou, rindo pra si.
A estrada se afunilava em curvas fechadas, margeada por uma mata densa. Uma neblina rasteira começava a surgir do nada, como um lençol espectral. À direita, o vislumbre de trilhos enferrujados, engolidos pela vegetação, acompanhava a estrada por alguns metros.
O vento soprava entre os vales e trazia consigo um gemido metálico, como correntes batendo.
Foi então que Ronaldo viu: adiante, sobre um abismo encoberto pela neblina, erguia-se uma estrutura de ferro velha, arqueada, como o esqueleto de um animal extinto. Um arrepio subiu-lhe pela espinha.
Ao atravessar a ponte, avistou à distância o mesmo vulto desgraçado com o qual duelara na rodovia.
O ônibus.
Impossível, mas lá estava ele. Fechando as duas faixas, faróis acesos como olhos de predador. Não conseguiria ver quem estava guiando o maldito monstro mecânico nem se quisesse.
Ronaldo gelou. Não havia como seguir em frente. Sem pensar, meteu logo um cavalo de pau. O Gol derrapou violentamente, mas parou estável no sentido contrário. Iria dormir na parada de caminhões se fosse preciso, dormiria no estacionamento, que fosse, mas tinha que sair dali naquele instante.
Ele acelerou de volta, tentando ganhar distância. Mas a estrada parecia diferente agora. Parecia ver figuras emergindo da neblina: homens de chapéus largos, paletós puídos, mulheres de vestidos longos e escuros. Alguns pareciam indiferentes, outros observavam silenciosamente, com olhos vazios.
O som abafado de um apito ecoou na noite, seguido pelo resfolegar distante do que parecia ser uma locomotiva a vapor.
A verdade é que não dava tempo para entender o que era aquilo tudo. O ônibus estava vindo, e ele não queria passar por tudo de novo.
Tentando desviar a atenção, Ronaldo puxou o volante para a direita... tarde demais.
O carro atravessou a mureta partida e voou.
Por um instante, só havia o silêncio e o céu cheio de neblina.
Até hoje, dizem os caminhoneiros que cruzam aquele trecho da estrada, que nas madrugadas mais frias, é possível ouvir o som de uma música pop misturado ao vento — e ver, por um breve segundo, um Gol vermelho mergulhando no vazio.
[FIM]
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